Abres a janela e os sons da cidade entram na casa de rompante.
Sobre o ruído contínuo das ondas de carros e aviões a passar, ouvem-se as gaivotas, migrantes que há muito trocaram esta paisagem sonora pela do verdadeiro mar e reclamaram o seu lugar na cidade que as alimenta.
Aéreas, assistem do alto a todas as nossas alegrias e dramas, aparentemente indiferentes, quer à nossa felicidade quer ao nosso sofrimento. Selvagens, unidas a nós apenas por instinto de sobrevivência. Seres de uma espécie diferente, com uma vivência paralela à nossa, sem nada em comum a não ser um território, este pedaço de natureza que foi entretanto humanizado.
Mas… quando te apercebes novamente dos sons que entram pela janela, agora afinal parecem ser mais do que só gaivotas… Fazem-te lembrar… Gargalhadas…? Gritos de dor? Choro de crianças? Conversas animadas, latidos, risos de escárnio, pregões, lamentos, desgarradas…
E perguntas-te: com tantos anos de convivência, serão afinal já um pouco como nós? (Ou nós como elas?)
No momento em que tens esse pensamento, todos esses sons se unem de repente num gigante espelho sonoro, uma outra cidade, flutuante, a pairar sobre as cabeças, as ruas, as praças, os jardins e as casas, reflectindo permanentemente o eco da vida de todos os habitantes da cidade.
Amadas ou odiadas, são uma presença constante. Uma companhia, quase. Sem elas, se calhar sentiamo-nos mais sós. Sem essa sua volúvel cidade siamesa, quem sabe a cidade nunca mais seria a mesma. Nem nós.